Uma antiefeméride para Campos de Carvalho

uma antiefemeride para camposEnsaio para marcar os 50 anos do livro O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho. Publicado no Suplemento Pernambuco. E dá pra ler lá no site do Suplemento, ou aqui mesmo.

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Queria ter adivinhado outras coisas na vida. Mas calhou de ser esta. Talvez a única que eu tenha mesmo adivinhado. Em qual mão está o papelzinho, quem é o amigo secreto, par ou ímpar?Nunca consegui. Mas, no começo de 2014, descobri que um baita livro faria 50 anos. E, vamos combinar, a gente é louco por efeméride. Vimos em 2014 os 100 anos de Cortázar, Bioy e Caymmi e os 50 anos da Mafalda, para falar dos mais celebrados. Há pouco, foi o centenário de Drummond e Vinícius com festas, feiras e painéis para os justos homenageados. Mas retomemos minha adivinhação: no começo de 2014, como diria o torcedor na geral do antigo e popular Maracanã, Eu já sabia: se não escrever sobre os 50 anos de O púcaro búlgaro, ninguém o fará. E, a não ser que meu Google esteja estragado, ou tenha saído algo no misterioso reino da Bulgária, não se falou que, há 50 anos, Walter Campos de Carvalho, mineiro de Uberaba (1916), numa coisa meio beatles, lançava o quarto livro (fora os dois renegados) em quase uma década e, sem mais, deixava de escrever.

Visto que o calendário anuncia que, daqui a dois dias (escrevo em 29 de dezembro), 2014 acabará, resolvo dar corpo a um texto para marcar uma antiefeméride. Aproveitar a não comemoração dos 50 anos de O púcaro búlgaro, para falar de O púcaro búlgaro. E talvez seja o mais justo com Campos de Carvalho, falecido em 1998. Ele era tão avesso a entrevistas (procure registros dele no Youtube) e à exposição, ele, com seus livros tão paralelos à lógica dos manuais, que é provável que não se sentisse à vontade em datas redondinhas de bustos de bronze e placas descerradas. Por isso a melhor data para falar de O púcaro búlgaro pode ser um dia incerto, como os anotados no diário do narrador do livro. Hoje ou amanhã ou um diadestes seus 50 anos e meia-dúzia de dias de existência, nesse “início de século 21, época em que certamente o mundo não fará mais sentido”, como se lê no romance.

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Verdade: poderia aproveitar a data incerta e falar do próprio Campos de Carvalho. Sua obra curta e valorosa, a figura nada pública. Porque, embora diga-se aqui e ali que ele vem sendo redescoberto, não sei se é tanto assim. Mas há gente mais qualificada e vivida para tratar da biografia e da obra. Antonio e Mario Prata, Juva Batella, Marcelino Freire, são camposcarvalhistas empedernidos, teriam mais o que contar. E tudo que eu dissesse seria de segunda mão, a partir do que eles já falaram. Então fico com O púcaro búlgaro, último romance do autor, primeiro que li, e que fez da obra dele uma Bulgária pessoal minha, algo que precisa existir, ser descoberto, ou inventado. Ao menos sentido. Mas por que tudo isso?

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Porquê nº 1: quem leu sabe bem.

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Porquê nº 2: Não há dúvidas (como prova o começo desta frase) de que vivemos tempos de certezas absolutas. Ficar em cima do muro é posicionar-se como alvo fácil para pedras de lado a lado do muro. O não-sei anda em crise de credibilidade. É preciso saber, firmar opinião e fincar pé. Mas é preciso mesmo, acho eu, ler Campos de Carvalho, livros como O púcaro búlgaro. Algo que comece com “Se a Bulgária existe, então a cidade de Sofia terá que fatalmente existir”. Como assim, se a Bulgária existe? Entre tantas certezas, uma é a de que a Bulgária existe, não é? Mas, calma lá, leiamos mais um pouco do livro: “Entende o autor, apenas, que muito mais importante do que ir à Lua é ir ou pelo menos tentar ir à Bulgária – ou, quando menos, descobri-la”. Aos loucos por razão e sentido, me parece ser provocação desesperadora. O que este narrador, que abandonou a esposa nos EUA após ver um púcaro búlgaro no Museu Histórico e Geográfico da Filadélfia, quer dizer questionando a existência de um país encontrável em atlas e wikipedias? Ou, no mínimo, alguém perguntará: Mas então Bulgária é metáfora do quê? E pesquisará a história da Bulgária, questões da identidade do povo búlgaro, relações do autor com o país e, quem sabe, fará um artigo, ensaio, A fragmentação do búlgaro contemporâneo em Campos de Carvalho.Eis:O púcaro búlgaro é um romance que te estranha na primeira página.

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Porquê nº 3: julgo fundamental dar uma confundidinha nas nossas ideias. Olhá-las pelo avesso, de perto ou de longe. Desacostumar-se. A cada dia isso me surge mais importante. Veja lá: conta o narrador que “passado o primeiro instante de surpresa que durou exatamente 18 meses”, e eu nem termino a frase e pergunto: quanto tem durado tuas surpresas ou espantos? De quanto em quanto tempo elas têm, de fato, acontecido? Ontem mesmo um avião desapareceu com mais de 100 pessoas – não foi o primeiro no ano – e por quanto tempo isso foi (se é que foi) um legítimo espanto? Pois o narrador fala da surpresa de 18 anos, e eu questiono: é exagero espantar-se por 18 anos? E mais: acho que Campos de Carvalho, querendo ou não, traz em frases e imagens assim a lembrança de que a vida, se a gente reparar, pode ser uma surpresa que dura 18 anos ou toda a existência. E, por favor, não pense que proponho mensagens de começo de ano, oh, quebre a rotina em 2015. Faça uma surpresa para você mesmo. Não. É o recordar que viver é esquisito. A lógica (ou que chamamos de lógica) de uma vida de horas marcadas, compromissos, o funcionamento da sociedade tal qual conhecemos, pode ser bem estranha, se a gente parar e olhar. Campos de Carvalho, reunindo personagens em um apartamento na Gávea para descobrir a Bulgária, a seu modo, me remete a Kafka. Ou ao tão pouco falado Manoel Carlos Karam. Gente que me lembra de que posso me espantar. Escritores que dão um tapa nas ideias e perguntam: Você acha estranho uma surpresa durar 18 anos? Mas acha normal sentar à frente da TV para ver pessoas numa vida pretensamente normal, enclausuradas numa casa para ganhar nossa simpatia e, em consequência, uns dinheiros? Ou ainda: acha que andar de blindado como um general na guerra é enriquecer?

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Porquê nº 4: Leio que O autor tentou honestamente imaginar-se um púcaro ou um búlgaro e não conseguiu, e ainda menos um púcaro búlgaro ou um búlgaro com púcaros na mão, na cabeça ou debaixo das axilas. Imaginou-se sem dificuldade um cavalo ou um guarda-chuva, e até mesmo um cavalo com um guarda-chuva – chegando ao extremo de imaginar-se um dia o próprio Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia, mas sem púcaro búlgaro dentro”. E penso duas coisas:

– porquê nº 4.1: após a leitura de trechos como o acima, é comum surgir, em vez da surpresa, a expressão nonsense, que tudo resume, parece tudo explicar, porém pode ser apenas um ferrolho para nosso vício de dar nome às coisas e acalmar-se com algo parecido com entender. Mas quero pensar mais um pouco sobre a ideia de definir uma obra ou cena como sendo sem sentido, incoerente (afinal, traduzindo literalmente nonsense, é o que está se dizendo: tal livro é nonsense, ou seja, integra o grupo de livros em que as coisas não fazem muito sentido). Conceituar obras desse modo me remete a Giorgio Agamben, em Estâncias, quando ele propõe uma espécie de maldição de Édipo: ao decifrar o enigma da Esfinge, ao vencer o mistério, Édipo teria nos condenado a crer que aquilo que não decifro, devora; e, em consequência, preciso decifrar para viver. Logo, sem essa de mistérios, não me venha com imaginar-se um Museu Histórico e Geográfico, isso não quer dizer nada, não é decifrável e não merece valor, não me leva adiante. Pois tendo a crer agora que a categorização nonsense é uma tentativa falhada de amansar aquilo que nos estranha, nos pergunta sem oferecer resposta. Signos sem significados: isso mete um certo medo. E, para não ficar diante do insondável, batizemos: nonsense. Agora dá para organizar numa prateleira, já tem nome, tudo parece mais calmo.

– porquê nº 4.2:Reparou no salto em queda livre sobre a linguagem? Não é raridade em Campos de Carvalho. E essa escrita em desabalada carreira de ideias surge-me também como um confronto com a incensada visão de literatura como busca de Le mot juste, garimpar a palavra exata para a coisa a ser dita, ou cortar-cortar-cortar em busca do essencial (variadas, e muitas vezes valiosas lições de Flaubert, Hemingway, Graciliano e longa descendência). Pois Campos de Carvalho, em vez de cortar para escrever, lutar com a palavra, com frequência parece deixar-se levar pelo jogo, o brinquedo da linguagem, como se seguisse o caminho insinuado pelo rumor da sua língua e das suas ideias. Faz lembrar a palavra aventura, como se refere a ela o já citado Manoel Carlos Karam (que bem poderia ser irmão mais novo, ou filho de Campos de Carvalho). A escrita de Campos de Carvalho em diversos momentos parece isso: deixar-se levar pela aventura da palavra, da sonoridade e do sentido. Escrita errante, curiosa, despreocupada do caminho traçado e do ponto de chegada. Mas é mais.

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Porquê nº 5: e já que toquei no tema linguagem: “Saí para matar o tempo e matei-o”. Eis um resumo do tal nonsense, o prazer com o jogo da palavra, mas vejo mais: uma espécie de recurso poético e procedimento literário que julgo típicos de Campos de Carvalho e superam em muito o trocadilho, a frase de efeito. Ao dizer que saiu para matar o tempo e matou-o, penso que o narrador está trazendo para o nível micro da construção de um período o mesmo arranjo que realiza no macro de um romance. Se já falei que Campos de Carvalho, ao propor uma busca pela Bulgária, ao nos apresentar uma trupe insólita dentro de um apartamento na Gávea, quase emite um alerta para reestranharmos o normal, parece que, no jogo miúdo com as palavras, ele expõe as entranhas de frases corriqueiras sobre as quais, no pragmatismo da comunicação, não pensamos ao falar. Ao tomar uma figura de linguagem de modo literal (concretizar o abstrato), o autor sublinha: a palavra tem peso, diz algo. E, ao fazer isso, ele nos indaga: viu que estranha é a linguagem, que artificial é essa gigantesca criação? Ao matar o tempo ou ao dizer uma conversa “arrastou-se por mais uma boa hora, aliás péssima”, Campos de Carvalho traz para o nível da frase o estranhamento que produz no nível do enredo. Mostra que há frases só aparentemente simples; assim como, nos enredos, faz pensar que a vida é só aparentemente cotidiana. Estranhamento em dois níveis. Trabalho dobrado para a imaginação, tão pouco exigida em nossos tempos.

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Porquê nº 6: Sim, o humor. Um humor como “provou com documentos, descender em linha reta do tal sábio hindu que inventou o zero, circunstância que lhe garante e à sua família um royalty sobre todos os zeros usados no mundo até o fim dos tempos”. Humor digno de um sketch do Monty Python.E, até por isso, um humor que não acaba quando termina o riso. Veja do que esta piada poderia falar. Ora, dou risada do absurdo que é alguém apropriar-se do zero, essa abstração matemática. Mas nem ligo para o fato de muitos alguéns se apropriarem da água. Ou quando a Fifa solicita o registro da palavra pagode ou as Casas Bahia pedem a propriedade da expressão “Só amanhã”. Nonsense é a minha vida.

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Porque nº 7: este humor, a aventura da palavra, a reativação da surpresa, não são a simples história de uma expedição à Bulgária. Pode acabar sendo “uma expedição para descobrir a nós mesmos”. Penso no personagem que afirma não existir e, a respeito do qual, o narrador comenta: “Se tinha sangue, sabia disfarçá-lo muito muito bem”. E cogito se ler O púcaro búlgaro e não parar de pensar (rir e depois pensar) não seria tocar o próprio pulso. Conferir se não estou disfarçando muito bem que tenho sangue. Se não estou acomodado com a “A mesma cara no espelho por exemplo, e a paisagem na janela, e os amigos que chamam ao telefone, a obrigação de fazer ou não fazer, a hora de defecar, o Deus nas alturas, os impostos, a gargalhada sempre igual, a demagogia do governo, a ameaça de guerra, a guerra, as palavras de cada dia e todos os dias”.

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Porque nº 8: leia isto: “Não é o mendigo que já tem transistor, e, sim, o transistor que já tem o mendigo”. Eu leio e lembro que em outro livro do Campos de Carvalho, A chuva imóvel, li “eu nunca uso o relógio nem deixo que ele me use”. E aí não tenho como não me indagar: será que ele, ao escrever esses livros de 1963 e 64, já tinha acesso a Histórias de cronópios e famas, às instruções para dar corda no relógio, “o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio”, publicado em 1962? Quero crer que não. E assim marcar a sensibilidade de Campos de Carvalho para o que é ser humano. Se, hoje, ao ver filas para comprar o novo iPhone, sempre penso em Cortázar, todos formando uma fila de presentes para o produto que acaba de nascer, por que não pensar, nessa mesma hora, em Campos de Carvalho? Eis uma medida para o autor d’O púcaro búlgaro: foi também tradutor do mundo e de seus estranhos absurdos tão normais, assim como Cortázar. E temos aí a certeza da força e da atualidade de Campos de Carvalho ou do poder premonitório de seu editor: em 1964, ele teria dito que O púcaro búlgaro só seria lido pelos jovens dali a 30 anos. Ou 50, sabemos agora.

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Porque nº 9: o romance fala “desde os tempos antediluvianos até os dias pré-diluvianos”, e vejo neste livro (e na obra de Campos de Carvalho), por baixo do humor e da aparente falta de sentido, uma sensação de véspera da tragédia, véspera do verdadeiro absurdo. Em muitos momentos, surgem imagens de vigília, personagens entre o sono e a realidade, e me é impossível não ler isso como um alerta ou um alarme: repara no que há de real no estranho sonho; repara no que há de sonho na normal realidade. E faz algo agora, porque os tempos sempre são pré-diluvianos, o sentido jamais virá, e tudo pode, kaputz, acabar amanhã. Sem aviso, causa ou consequência. Mesmo que acabe só para mim, a morte como um dilúvio só meu. Fim do mundo particular. Não há como sair dos livros do Campos de Carvalho (por mais que ele tenha afirmado a Antonio Prata que não gostava de si trágico) sem esta sensação de que “não disponho de vossa eternidade para viver, muito menos para pensar. É agora ou nunca”, que é como acaba A vaca de nariz sutil. E é como creio que saímos dos livros deste autor. E como deveríamos sair de qualquer grande livro. Com urgência de pensar.

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Sim, poderia fazer um décimo porquê. Mas seria tão arrumadinho e lógico quanto uma redonda homenagem de 50 anos feita em 2014 para um livro como O púcaro búlgaro. Não é o caso aqui.

Porto Alegre, 30 de dezembro de 2014.

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